A
história de Caim e Abel é conhecida. Caim era o primogênito filho
de Adão e Eva, e irmão mais velho de Abel. Caim dedicou-se a lavrar
a terra, e Abel tornou-se pastor de ovelhas. Certo dia, Caim resolveu
fazer uma oferenda a Deus, do fruto da terra que lavrara. Abel também
ofertou ao Senhor Deus, mas um novilho, das primícias de seu
rebanho, um sacrifício de gordura em holocausto. Deus se agradou da
oferta de Abel, mas não atentou para a oferta de Caim.
Muito
se discute a razão de Deus ter rejeitado a oferta de Caim. O texto
sacro não afirma que Caim foi displicente, nem que ofereceu coisa de
qualidade inferior ao que tinha condições de ofertar. Tudo o que se
sabe é que Deus rejeitou a oferta de Caim.
Após
isso Caim se irou mui profundamente, descaindo-lhe o semblante. Era o
retrato dos sentimentos carnais à flor da pele, um misto de ira e
decepção. Caim certamente estava decepcionado porque imaginava que
Deus se agradaria de sua oferta, pois suas intenções eram boas.
Caim desejava agradar a Deus, mas a forma escolhida aparentemente não
agradou ao Senhor, e suas boas intenções ainda foram ofuscadas pela
oferta aprazível de Abel a Deus. A inveja, o despeito e a ira
possuíram o coração de Caim, de forma que não mais pôde se
dominar, e assassinou seu irmão Abel.
Em
virtude do texto sacro não deixar explícito a razão pela qual Deus
rejeitou a oferta de Caim, o famoso escritor português José
Saramago, refletindo certamente o pensamento de muitos outros, disse,
em deboche, ser Deus o responsável pelo primeiro homicídio na face
da terra, ao desprezar a oferta de Caim. Tal pensamento é o retrato
do sentimento de revolta contra a vontade soberana de Deus. De Caim
surge uma geração de seres humanos separados da presença de Deus.
Ao
que parece, para tais pessoas, Deus não teria sido “gentil e
educado”. Deus deveria ter aceitado a oferta de Caim para não
desapontá-lo, evitando o desencadear do que veio a ser o primeiro
homicídio. De fato, é a constatação que fazemos de uma pessoa que
recebe um presente e diz não ter gostado para a pessoa que o
presenteou. A verdade nua e crua poderia ser evitada não apenas por
uma questão de etiqueta, mas para não gerar mágoas e feridas
desnecessárias. Afinal, será que valeria a pena ferir os
sentimentos de alguém que apenas quis agradar?
Contudo,
nem sempre a etiqueta que se poderia estar exigindo de Deus no caso
de Caim e Abel é aplicável em todas as situações de nossas vidas.
É inevitável, por exemplo, que uma mulher resolva não atentar para
as gentilezas de um pretendente quando este, por alguma razão
pessoal, não lhe agrada. Caso ela dê atenção demasiada, por
gentileza ou educação, estará criando falsas esperanças no rapaz.
Em determinado momento ela terá que dizer que não tem interesse
nele, e embora seu desejo não seja o de ferir seus sentimentos, a
geração de uma mágoa talvez seja inevitável. Igualmente acontece
na relação entre patrão e cozinheiro. Por mais que um cozinheiro
tenha se esforçado e utilizado de seus melhores dons para preparar
um alimento saboroso para seu patrão, isso não necessariamente
garantirá a satisfação do patrão, que, por preferências
pessoais, ou seja, alheias ao esforço e ao trabalho do cozinheiro,
pode não vir a gostar. E se o patrão, que deseja comer apenas
aquilo que lhe seja aprazível, não revelar a verdade ao cozinheiro,
comerá a contragosto, sem prejuízo do salário que terá que pagar
ao cozinheiro, que não tem culpa por não conhecer as preferências
do patrão.
Todo
esse dilema entre a “intenção de agradar” e o “ter agradado”
ilustra perfeitamente o pensamento humano acerca das religiões. A
maioria das pessoas acredita na existência de um Deus, mas em tempos
de uma apregoada Nova Era, é politicamente incorreto se afirmar que
Deus se revelou decisivamente em Jesus. O relativismo religioso
aparenta ser tolerante, mas será que possui alguma chance de ser
verdadeiro?
Um
exemplo; É por uma obviedade lógica que, se existe reencarnação,
o homem não morre apenas uma só vez, sobrevindo após isso o juízo
(Hebreus 9.27). Ou pessoas sem Deus irão para o inferno, ou seus
espíritos serão aperfeiçoados em processos de reencarnação. Não
há como tais coisas serem simultaneamente verdadeiras. As religiões
contrastam entre si em seus dogmas e é impossível que todas sejam
simultaneamente verdadeiras. Por saberem disso, alguns dos movimentos
“New Age” apregoam caminhos espirituais individuais, onde
cada um escolhe o seu caminho, abraçando aquilo que julga ser a
verdade em cada religião que encontra. Parece psicologicamente
mais fácil aceitar que o importante não são os meios de se
alcançar a Deus, mas a intenção. Todo aquele que tem intenção
genuína de agradar a Deus, independentemente da forma, alcançará a
atenção de Deus. Mas será que isso realmente procede?
No
Evangelho de João, capítulo terceiro, Jesus Cristo faz diversas
afirmações audaciosas (João 3.16-21): Porque Deus amou o
mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque
Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo,
mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem crê
nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. E
a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram
mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. Porque
todo aquele que faz o mal odeia a luz, e não vem para a luz, para
que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem
pratica a verdade vem para a luz, a fim de que as suas obras sejam
manifestas, porque são feitas em Deus. Em João, capítulo
14.6 Jesus diz: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida;
ninguém vem ao Pai, senão por mim.
Como
se vê, Jesus Cristo, sem meias palavras, afirma categoricamente que
apenas por ele, e por meio dele, é possível agradar a Deus. Fica
subentendido também que antes dele, todos os homens, bons e maus,
estavam em trevas. As trevas simbolizam a ignorância a respeito de
Deus. Contudo, mesmo em trevas há aqueles que amam a verdade, e
outros que não amam a verdade. Desta forma, aquele que ama a
verdade, mesmo que ande em trevas, ao ver a luz – que é a verdade
– se achega para ela, enquanto aquele que não ama a verdade, ao
ver a luz, aborrece-se da mesma, e se afasta dela. Jesus Cristo é,
assim, a fundamentação de uma sentença (de condenação ou
salvação) que já existia antes da manifestação da própria luz.
Em outras palavras, mesmo num mundo de trevas, há aqueles que amam a
verdade, e aqueles que não amam a verdade. Quem não ama a verdade
já está condenado, mas sua condenação apenas é manifesta em
Jesus Cristo. Desta forma, não é pré-requisito para a salvação
conhecer a luz, mas amá-la. Assim foram salvos todos os heróis da
fé no antigo testamento, ou seja, anteriores ao próprio Cristo.
Embora não conhecessem a luz, já a amavam. E nisso se consolidava a
fé daqueles homens, pois criam em algo que ainda não tinham sequer
visto. É o que a Bíblia assevera em Hebreus 11.1: Ora, a fé
é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas
que se não vêem. Aqueles homens, pela fé, já entendiam o
que Abel havia entendido, mas que Caim não entendeu. Aqueles homens
entenderam que o pecado faz separação entre Deus e o homem, e que
quando Deus, ainda assim, não condena o homem, está na verdade
sacrificando a si mesmo, ou seja, abrindo mão de si mesmo para o bem
do homem. Não apenas isso! Aqueles homens entendiam que Deus, assim,
retribuía o mal com o bem, o ruim, com o que existia de melhor.
Por isso a oferta de Abel agradou a Deus, pois ela possuía
toda a essência do amor de Deus. Já a oferta de Caim, por melhor
que fosse sua intenção, era destituída de profundidade e de maior
significado. Deus, ao não atentar para oferta de Caim, deu ao mesmo
a grande oportunidade de realmente agradar a Deus (Genesis 4.7-a: “Se
bem fizeres, não é certo que serás aceito?”).
A
reação de Caim é idêntica a do religioso hodierno ao se deparar
com a verdade, que apenas é encontrada em Jesus Cristo. Uma vez que
conhece a verdade, aborrece-se dela e cria despeito pela mesma. Assim
como Caim alimentou ira por Abel, o religioso hodierno alimenta ira
contra a igreja (anunciadora da verdade), criando a sua própria
verdade. Ele, uma vez conhecendo a verdade, não se achega para a
mesma, pois a verdade denuncia suas más obras, e seu pecado não
confesso. Esta pessoa, assim, afasta-se da luz, rumo a densas trevas,
onde se anestesiará psicologicamente em busca de um efeito
tranqüilizante para sua mente. O pecado, por sua vez, pode ser como
o de Caim, que tinha a boa intenção de agradar a Deus, intenção
que, todavia, ao se deparar com a verdade, mostra-se falha, assim
como a própria oferta. Desta forma, a idéia de agradar a si mesmo
torna-se superior a vontade original, que era de agradar a Deus, e
nisto temos o orgulho e a soberba, que, uma vez manifestos,
desmascaram as intenções veladas do coração. Se o desejo de
Caim fosse puramente o de agradar a Deus, não teria se inflado de
ódio, mas procedido, na imediata oportunidade, da maneira correta.
Quando o homem se coloca acima do próprio Deus, seus caminhos não o
levarão ao coração de Deus, mas ao seu próprio coração.
Por
fim, poderia restar o queixume de que Caim se tornara lavrador, e não
pastor de ovelhas, o que lhe teria privado de sensibilidade para
entender como melhor agradar a Deus. Mas assim também foi para com
toda a humanidade, pois Deus escolheu um povo para se revelar, mas
por meio de Cristo Jesus estendeu a oportunidade para todos os povos.
Não se trata de demérito ao ofício de Caim, mas sim em reconhecer
que a oferta de Abel representava melhor o coração de Deus. Assim,
mesmo lavrador, Caim tinha no seu irmão Abel o espelho para poder
agradar a Deus. Hoje, mesmo quem não nasceu num lugar onde predomine
a fé Cristã, ao conhecê-la, tem a oportunidade de se pautar por
ela. E isto não é se privar de valores culturais íntimos e
indisponíveis, mas um ajustamento destes valores culturais aos
valores divinos, que transcendem qualquer língua, povo, nação ou
cultura. Somente o orgulho tolo faz o homem desprezar o valor divino
por valores terrenos. Quanto àqueles que não conheceram a verdade,
ou seja, nunca viram efetivamente a luz, que é Jesus Cristo, Deus é
sabedor de todas as coisas, e sabe quem são aqueles que, mesmo em
trevas, amam a verdade, e aqueles que não amam a verdade. A luz
mostra como as coisas realmente são.
Nas
palavras de Simeão ditas a Maria: Eis que este menino (Jesus
Cristo) está destinado tanto para ruína como para levantamento de
muitos em Israel e para ser alvo de contradição (Lucas 2.34).