terça-feira, 21 de dezembro de 2010

À maneira de Caim



A história de Caim e Abel é conhecida. Caim era o primogênito filho de Adão e Eva, e irmão mais velho de Abel. Caim dedicou-se a lavrar a terra, e Abel tornou-se pastor de ovelhas. Certo dia, Caim resolveu fazer uma oferenda a Deus, do fruto da terra que lavrara. Abel também ofertou ao Senhor Deus, mas um novilho, das primícias de seu rebanho, um sacrifício de gordura em holocausto. Deus se agradou da oferta de Abel, mas não atentou para a oferta de Caim.
Muito se discute a razão de Deus ter rejeitado a oferta de Caim. O texto sacro não afirma que Caim foi displicente, nem que ofereceu coisa de qualidade inferior ao que tinha condições de ofertar. Tudo o que se sabe é que Deus rejeitou a oferta de Caim.
Após isso Caim se irou mui profundamente, descaindo-lhe o semblante. Era o retrato dos sentimentos carnais à flor da pele, um misto de ira e decepção. Caim certamente estava decepcionado porque imaginava que Deus se agradaria de sua oferta, pois suas intenções eram boas. Caim desejava agradar a Deus, mas a forma escolhida aparentemente não agradou ao Senhor, e suas boas intenções ainda foram ofuscadas pela oferta aprazível de Abel a Deus. A inveja, o despeito e a ira possuíram o coração de Caim, de forma que não mais pôde se dominar, e assassinou seu irmão Abel.  
Em virtude do texto sacro não deixar explícito a razão pela qual Deus rejeitou a oferta de Caim, o famoso escritor português José Saramago, refletindo certamente o pensamento de muitos outros, disse, em deboche, ser Deus o responsável pelo primeiro homicídio na face da terra, ao desprezar a oferta de Caim. Tal pensamento é o retrato do sentimento de revolta contra a vontade soberana de Deus. De Caim surge uma geração de seres humanos separados da presença de Deus.
Ao que parece, para tais pessoas, Deus não teria sido “gentil e educado”. Deus deveria ter aceitado a oferta de Caim para não desapontá-lo, evitando o desencadear do que veio a ser o primeiro homicídio. De fato, é a constatação que fazemos de uma pessoa que recebe um presente e diz não ter gostado para a pessoa que o presenteou. A verdade nua e crua poderia ser evitada não apenas por uma questão de etiqueta, mas para não gerar mágoas e feridas desnecessárias. Afinal, será que valeria a pena ferir os sentimentos de alguém que apenas quis agradar?
Contudo, nem sempre a etiqueta que se poderia estar exigindo de Deus no caso de Caim e Abel é aplicável em todas as situações de nossas vidas. É inevitável, por exemplo, que uma mulher resolva não atentar para as gentilezas de um pretendente quando este, por alguma razão pessoal, não lhe agrada. Caso ela dê atenção demasiada, por gentileza ou educação, estará criando falsas esperanças no rapaz. Em determinado momento ela terá que dizer que não tem interesse nele, e embora seu desejo não seja o de ferir seus sentimentos, a geração de uma mágoa talvez seja inevitável. Igualmente acontece na relação entre patrão e cozinheiro. Por mais que um cozinheiro tenha se esforçado e utilizado de seus melhores dons para preparar um alimento saboroso para seu patrão, isso não necessariamente garantirá a satisfação do patrão, que, por preferências pessoais, ou seja, alheias ao esforço e ao trabalho do cozinheiro, pode não vir a gostar.  E se o patrão, que deseja comer apenas aquilo que lhe seja aprazível, não revelar a verdade ao cozinheiro, comerá a contragosto, sem prejuízo do salário que terá que pagar ao cozinheiro, que não tem culpa por não conhecer as preferências do patrão.
Todo esse dilema entre a “intenção de agradar” e o “ter agradado” ilustra perfeitamente o pensamento humano acerca das religiões. A maioria das pessoas acredita na existência de um Deus, mas em tempos de uma apregoada Nova Era, é politicamente incorreto se afirmar que Deus se revelou decisivamente em Jesus. O relativismo religioso aparenta ser tolerante, mas será que possui alguma chance de ser verdadeiro?
Um exemplo; É por uma obviedade lógica que, se existe reencarnação, o homem não morre apenas uma só vez, sobrevindo após isso o juízo (Hebreus 9.27). Ou pessoas sem Deus irão para o inferno, ou seus espíritos serão aperfeiçoados em processos de reencarnação. Não há como tais coisas serem simultaneamente verdadeiras. As religiões contrastam entre si em seus dogmas e é impossível que todas sejam simultaneamente verdadeiras. Por saberem disso, alguns dos movimentos “New Age” apregoam caminhos espirituais individuais, onde cada um escolhe o seu caminho, abraçando aquilo que julga ser a verdade em cada religião que encontra.  Parece psicologicamente mais fácil aceitar que o importante não são os meios de se alcançar a Deus, mas a intenção. Todo aquele que tem intenção genuína de agradar a Deus, independentemente da forma, alcançará a atenção de Deus. Mas será que isso realmente procede?
No Evangelho de João, capítulo terceiro, Jesus Cristo faz diversas afirmações audaciosas (João 3.16-21): Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal odeia a luz, e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus. Em João, capítulo 14.6 Jesus diz: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.
Como se vê, Jesus Cristo, sem meias palavras, afirma categoricamente que apenas por ele, e por meio dele, é possível agradar a Deus. Fica subentendido também que antes dele, todos os homens, bons e maus, estavam em trevas. As trevas simbolizam a ignorância a respeito de Deus. Contudo, mesmo em trevas há aqueles que amam a verdade, e outros que não amam a verdade. Desta forma, aquele que ama a verdade, mesmo que ande em trevas, ao ver a luz – que é a verdade – se achega para ela, enquanto aquele que não ama a verdade, ao ver a luz, aborrece-se da mesma, e se afasta dela. Jesus Cristo é, assim, a fundamentação de uma sentença (de condenação ou salvação) que já existia antes da manifestação da própria luz. Em outras palavras, mesmo num mundo de trevas, há aqueles que amam a verdade, e aqueles que não amam a verdade. Quem não ama a verdade já está condenado, mas sua condenação apenas é manifesta em Jesus Cristo. Desta forma, não é pré-requisito para a salvação conhecer a luz, mas amá-la. Assim foram salvos todos os heróis da fé no antigo testamento, ou seja, anteriores ao próprio Cristo. Embora não conhecessem a luz, já a amavam. E nisso se consolidava a fé daqueles homens, pois criam em algo que ainda não tinham sequer visto. É o que a Bíblia assevera em Hebreus 11.1: Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem. Aqueles homens, pela fé, já entendiam o que Abel havia entendido, mas que Caim não entendeu. Aqueles homens entenderam que o pecado faz separação entre Deus e o homem, e que quando Deus, ainda assim, não condena o homem, está na verdade sacrificando a si mesmo, ou seja, abrindo mão de si mesmo para o bem do homem. Não apenas isso! Aqueles homens entendiam que Deus, assim, retribuía o mal com o bem, o ruim, com o que existia de melhor.  Por isso a oferta de Abel agradou a Deus, pois ela possuía toda a essência do amor de Deus. Já a oferta de Caim, por melhor que fosse sua intenção, era destituída de profundidade e de maior significado. Deus, ao não atentar para oferta de Caim, deu ao mesmo a grande oportunidade de realmente agradar a Deus (Genesis 4.7-a: “Se bem fizeres, não é certo que serás aceito?”).
A reação de Caim é idêntica a do religioso hodierno ao se deparar com a verdade, que apenas é encontrada em Jesus Cristo. Uma vez que conhece a verdade, aborrece-se dela e cria despeito pela mesma. Assim como Caim alimentou ira por Abel, o religioso hodierno alimenta ira contra a igreja (anunciadora da verdade), criando a sua própria verdade. Ele, uma vez conhecendo a verdade, não se achega para a mesma, pois a verdade denuncia suas más obras, e seu pecado não confesso. Esta pessoa, assim, afasta-se da luz, rumo a densas trevas, onde se anestesiará psicologicamente em busca de um efeito tranqüilizante para sua mente. O pecado, por sua vez, pode ser como o de Caim, que tinha a boa intenção de agradar a Deus, intenção que, todavia, ao se deparar com a verdade, mostra-se falha, assim como a própria oferta. Desta forma, a idéia de agradar a si mesmo torna-se superior a vontade original, que era de agradar a Deus, e nisto temos o orgulho e a soberba, que, uma vez manifestos, desmascaram as intenções veladas do coração.  Se o desejo de Caim fosse puramente o de agradar a Deus, não teria se inflado de ódio, mas procedido, na imediata oportunidade, da maneira correta. Quando o homem se coloca acima do próprio Deus, seus caminhos não o levarão ao coração de Deus, mas ao seu próprio coração.
Por fim, poderia restar o queixume de que Caim se tornara lavrador, e não pastor de ovelhas, o que lhe teria privado de sensibilidade para entender como melhor agradar a Deus. Mas assim também foi para com toda a humanidade, pois Deus escolheu um povo para se revelar, mas por meio de Cristo Jesus estendeu a oportunidade para todos os povos. Não se trata de demérito ao ofício de Caim, mas sim em reconhecer que a oferta de Abel representava melhor o coração de Deus. Assim, mesmo lavrador, Caim tinha no seu irmão Abel o espelho para poder agradar a Deus. Hoje, mesmo quem não nasceu num lugar onde predomine a fé Cristã, ao conhecê-la, tem a oportunidade de se pautar por ela. E isto não é se privar de valores culturais íntimos e indisponíveis, mas um ajustamento destes valores culturais aos valores divinos, que transcendem qualquer língua, povo, nação ou cultura. Somente o orgulho tolo faz o homem desprezar o valor divino por valores terrenos. Quanto àqueles que não conheceram a verdade, ou seja, nunca viram efetivamente a luz, que é Jesus Cristo, Deus é sabedor de todas as coisas, e sabe quem são aqueles que, mesmo em trevas, amam a verdade, e aqueles que não amam a verdade. A luz mostra como as coisas realmente são.
Nas palavras de Simeão ditas a Maria: Eis que este menino (Jesus Cristo) está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição (Lucas 2.34).