A linguagem é um dos marcos
principais da civilização.
Uma linguagem exige uma leitura de
mundo semelhante, sem a qual gestos, sinais ou vocalizações seriam
inúteis. Isto porque a linguagem não exprime apenas fatos
observáveis, mas também juízos sobre tais fatos. Definir o que é
pedra é algo de um nível civilizatório bem primitivo. Definir a
utilidade da pedra, todavia, exige mais sofisticação, pois exige a
construção de um valor sobre a coisa. Se os valores são
discrepantes, o nível civilizatório fica estancado naquele nível
primitivo, pois a linguagem não se desenvolve. Uma pessoa com
linguagem discrepante das demais morrerá com sua leitura de mundo,
porquanto apenas ela conseguiu ter tal leitura.
Mas a linguagem, como forte
identificador civilizatório, seria um paradigma para definir se uma
pessoa vive ou não na realidade?
Uma pessoa com compreensão da
realidade discrepante das demais seria a única pessoa sã, e todas
as demais dementes, pois não entenderam sua leitura de mundo, ou
seria a demente, um esquizofrênico que vive uma realidade imaginária
paralela? Parece certo que a existência de uma linguagem
compreensível acaba sendo determinante para uma conceituação de
sanidade e demência.
O curioso é que se não existem
verdades objetivas, definir sanidade e demência torna-se impossível.
Não é exagerado ou maniqueísta colocar as coisas em tal
perspectiva. Para um relativista, as verdades são coisas relativas,
não podendo haver uma definição para todos, num plano global. As
definições de verdade se constroem em conceitos diversos e
ilimitados, e por isto mesmo, não seria possível estabelecê-la de
forma objetiva. O que se entenderia por sanidade seria nada mais que
a imposição de um valor prevalente num dado momento, transitório e
mutável.
Existe a verdade? Como harmonizar a
crença de algumas pessoas de que existe vida após a morte com a de
pessoas que não acreditam numa vida após a morte? Certamente as
duas coisas não podem ser simultaneamente verdadeiras, pois uma
coisa é a negação da outra. Certamente ambas as crenças se
desenvolveram de visões de mundo distintas, de onde emergiram seus
conceitos, mas não é possível afirmar que são independentes, ou
seja, que a veracidade do fato depende da crença. Uma é o contrário
da outra. Negar isto é o mesmo que negar a existência de afirmações
e negações. Não existirá vida após a morte pelo simples fato de
pessoas nela acreditarem. Ela não deixará de existir pelo simples
fato de pessoas nela não acreditarem. Ou ela existe, ou ela não
existe.
A verdade é que nenhum relativista
ou pragmatista vive como propugna compreender as coisas. Ainda que
admitam existir verdades objetivas ou absolutas, mas que seu
conhecimento é simplesmente inacessível, eles elegem algumas
verdades para suas vidas, sem as quais a vida seria como uma terra
movediça. É com base em tais verdades que o relativista e o
pragmatista pauta a sua vida, e não haveria como ser diferente.
As verdades relativas, propriamente
ditas, são as que decorrem da análise da mesma coisa em situações
diferentes. O conceito de frio, para uma pessoa que vive num lugar em
que a temperatura média é de 40° graus, bem pode ser diferente do
conceito de frio de uma pessoa que mora num lugar onde a temperatura
média é 20° graus. Não é que sejam dois tipos de frio
antagônicos, mas conceitos de frio distintos, baseado em realidades
distintas. Verdades objetivas, todavia, serão necessárias quando se
tratar de realidades idênticas (variáveis e padrões idênticos).
Voltando então à definição de
sanidade e demência, a sanidade poderá ser demência, e a demência
sanidade, a depender do paradigma adotado. Se o paradigma adotado é
a compreensão da linguagem, cada interlocutor verá ao outro como
louco se as leituras de mundo expressadas não se corresponderem.
Nesse caso, e partindo-se do pressuposto de que ambos os
interlocutores vivem no mesmo mundo, teremos uma verdade relativa,
mas não por se tratar de realidades distintas, mas por faltar mais
dados sobre a realidade. Em se tratando de pessoas que vivem no mesmo
mundo, a visão de um não será verdadeira apenas porque todos os
demais compartilham dela. Como no exemplo da vida após a morte, caso
esta não exista, não adiantará que todos creiam em sua existência
(assim como, existindo, nada adiantará a descrença nela).
Se o paradigma adotado é a
correspondência da linguagem com a realidade, não será suficiente
a correspondência de leituras do mundo expressadas pela linguagem
entre pessoas que podem fazer tal leitura, mas que a leitura de mundo
seja realmente correspondente com a realidade. Assim, uma única
pessoa que tivesse uma leitura de mundo correspondente com a
realidade estaria com a verdade, em detrimento de todos que vissem e
pensassem de outra forma.
É evidente que seria necessário
conceituar realidade, bem como critérios para defini-la. Se os
critérios forem diferentes, existirão “verdades” sobre a mesma
coisa, e por isso, relativas. Aqui não se trata de verdades
relativas propriamente ditas, mas de verdades absolutas que,
circunstancialmente, equiparam-se às verdades relativas propriamente
ditas.
Esta mera contemplação de
“verdades” não faz de uma pessoa relativista, se a mesma tiver
adotado um critério para conceituar a realidade, e daí extrair a
sua leitura de mundo. Esta pessoa já possui um conceito de verdade,
e o que não está dentro de seu conceito não é uma verdade, senão
para aquele que possui outro critério. Os próprios critérios, por
sua vez, devem ser julgados como certos e errados, e esse juízo
depende necessariamente da compreensão da realidade. Assim, vemos
que na própria compreensão da realidade extraímos os critérios
para julgar a própria realidade. Se se entende que uma coisa é uma
pedra, é porque a coisa possui características de pedra, e por se
entender quais são as características de uma pedra, pode-se
entender o que é, ou não, pedra.
Mas seria possível entender o que é
pedra, sem a existência da pedra da qual extraímos as suas
características, e o seu conceito? Se não houver nenhuma atividade
criativa no ato de compreensão da coisa, não. Se o que queremos é
compreender a coisa, pressupõe-se que a mesma já exista.
Como, então, se entende quais são
as características de uma pedra? Observando-a. Mas como se observa?
Se duas pessoas enxergarem
características diferentes e independentes (não complementares) na
mesma pedra, onde estará o erro, na realidade, ou na compreensão
dela? Parece-me evidente que na compreensão dela. A realidade é
como uma mão que veste uma luva. Tanto a luva se amolda à mão como
esta se encaixa com a luva. Se a luva não se amoldar à mão, é
porque aquela não possui correspondência com esta. A compreensão
da realidade deve corresponder à realidade, e uma compreensão da
realidade que não corresponda à realidade não é uma compreensão
da realidade. Não se trata de materialismo. O materialismo é uma
definição da realidade, e desta definição nasce uma compreensão
da realidade. A problemática reside justamente na definição da
realidade, pois uma realidade erroneamente definida resultará numa
compreensão errada da mesma, assim como uma compreensão errada da
realidade resultará numa definição errada de realidade.
Temos, então, realidade, definição
de realidade e compreensão da realidade. Como se saber se está
compreendendo corretamente a realidade, bem como a definindo
corretamente? A resposta é: por meio de uma consciência da
realidade.
Naquilo que se chama de consciência
da realidade não cabem indagações como: “e se a consciência da
realidade estiver errada?” A consciência da realidade não pode
estar errada, porque é a consciência que a realidade (absoluta)
possui de si própria. Seria como um círculo que contempla a si
mesmo, e se compreende como a linha que o delimita e tudo aquilo que
está dentro. Não pode se contemplar como sendo além daquilo que é,
nem aquém, do contrário, não será consciência da realidade, mas
consciência de uma irrealidade. É um axioma (pressuposto
necessário) para uma definição correta de realidade, e emerge do
entendimento de que existem verdades absolutas. A consciência da
realidade é o juiz perfeito, que permite entender realidade, e por
isso, compreendê-la corretamente. É a onisciência, que
necessariamente, e por definição, inclui um perfeito conhecimento
de si própria.
Esta onisciência que a realidade
possui de si própria é uma relação de imanência e transcendência
entre realidade e consciência. A consciência da realidade precisa
estar além da realidade (transcendência), mas necessariamente
correspondendo à realidade (imanência). A realidade não é
transcendente, mas a consciência dela sim. A consciência não é
imanente, mas a realidade representada por ela sim. A consciência da
realidade é o espelho fiel da realidade
Este conceito converge com o de um
Deus todo poderoso, onisciente, onipresente e onipotente. Como um
axioma necessário da própria existência, a existência está
contida nele, sendo uma parte dele, finita, e não o próprio Deus,
eterno. E como um ser onisciente, onipresente e onipotente, ele é a
própria realidade, e ainda a consciência de si mesmo. Deus =
realidade absoluta + consciência da realidade absoluta (imanência +
transcendência).
Dentro deste panorama, o homem, que
não é a realidade, mas parte da realidade, dificilmente poderá ter
uma definição precisa da mesma em sua integralidade, ou em alguns
de seus aspectos, pois sua ciência lhe dá um conhecimento limitado
da realidade. Ele não pode julgar a realidade pela mera consciência
de si mesmo, pois sendo apenas parte da realidade, não equivale a
toda ela, e não contemplando o todo, não pode possuir onisciência,
e para uma definição perfeita da realidade, em toda a sua dimensão,
seria necessário ser onisciente. Todavia, o homem pode reconhecer
este fato, abrindo-se à realidade desconhecida, mas nem por isso
menos realidade. Abrir-se a realidade desconhecida é reconhecer a
impossibilidade de defini-la ao mesmo tempo em que busca
compreendê-la dentro dos limites da cognoscibilidade, que tem como
limite a própria onisciência.
O relativismo é insustentável como
filosofia, em toda sua dimensão. Todo ser humano precisa de verdades
objetivas, e o mero reconhecimento de que a totalidade delas é
inalcançável, não conduz a conclusão de que não existam. A mera
contemplação de várias “verdades” num mosaico incompleto, por
sua vez, não autoriza afirmar que todas sejam verdades, de fato.
Verdades relativas existem tomando-se
por base partes da realidade distintas, e nesse aspecto, são
válidas.
Todavia, “verdades” relativas
acerca de partes da realidade iguais existem pela mera
impossibilidade de se definir o que é realidade, o que leva a
conclusão de que tais verdades relativas são apenas valores,
crenças, verdadeiras, ou não.
Aquele que entende a existência de
uma realidade desconhecida, mas nem por isso menos realidade, deve
reconhecer que Deus é a realidade absoluta, e a consciência de si
mesma. A fronteira para realidade desconhecida, em muitos casos, só
poderá ser cruzada por um ato de fé. A ciência não pode,
propriamente, cruzar tal barreira, porque, por definição,
encontra-se dentro da fronteira das coisas conhecidas. Referida
fronteira pode até ser alargada com o avanço científico, mas não
propriamente cruzada, pois parece fato que os limites da realidade
desconhecida são inimagináveis.
Sem onisciência, crer ou não
crer em Deus (e em outras tantas coisas) é uma questão de fé.
Nenhum comentário:
Postar um comentário