sábado, 19 de janeiro de 2013

Uma questão de fé




A linguagem é um dos marcos principais da civilização.
Uma linguagem exige uma leitura de mundo semelhante, sem a qual gestos, sinais ou vocalizações seriam inúteis. Isto porque a linguagem não exprime apenas fatos observáveis, mas também juízos sobre tais fatos. Definir o que é pedra é algo de um nível civilizatório bem primitivo. Definir a utilidade da pedra, todavia, exige mais sofisticação, pois exige a construção de um valor sobre a coisa. Se os valores são discrepantes, o nível civilizatório fica estancado naquele nível primitivo, pois a linguagem não se desenvolve. Uma pessoa com linguagem discrepante das demais morrerá com sua leitura de mundo, porquanto apenas ela conseguiu ter tal leitura.
Mas a linguagem, como forte identificador civilizatório, seria um paradigma para definir se uma pessoa vive ou não na realidade?
Uma pessoa com compreensão da realidade discrepante das demais seria a única pessoa sã, e todas as demais dementes, pois não entenderam sua leitura de mundo, ou seria a demente, um esquizofrênico que vive uma realidade imaginária paralela? Parece certo que a existência de uma linguagem compreensível acaba sendo determinante para uma conceituação de sanidade e demência.
O curioso é que se não existem verdades objetivas, definir sanidade e demência torna-se impossível. Não é exagerado ou maniqueísta colocar as coisas em tal perspectiva. Para um relativista, as verdades são coisas relativas, não podendo haver uma definição para todos, num plano global. As definições de verdade se constroem em conceitos diversos e ilimitados, e por isto mesmo, não seria possível estabelecê-la de forma objetiva. O que se entenderia por sanidade seria nada mais que a imposição de um valor prevalente num dado momento, transitório e mutável.
Existe a verdade? Como harmonizar a crença de algumas pessoas de que existe vida após a morte com a de pessoas que não acreditam numa vida após a morte? Certamente as duas coisas não podem ser simultaneamente verdadeiras, pois uma coisa é a negação da outra. Certamente ambas as crenças se desenvolveram de visões de mundo distintas, de onde emergiram seus conceitos, mas não é possível afirmar que são independentes, ou seja, que a veracidade do fato depende da crença. Uma é o contrário da outra. Negar isto é o mesmo que negar a existência de afirmações e negações. Não existirá vida após a morte pelo simples fato de pessoas nela acreditarem. Ela não deixará de existir pelo simples fato de pessoas nela não acreditarem. Ou ela existe, ou ela não existe.
A verdade é que nenhum relativista ou pragmatista vive como propugna compreender as coisas. Ainda que admitam existir verdades objetivas ou absolutas, mas que seu conhecimento é simplesmente inacessível, eles elegem algumas verdades para suas vidas, sem as quais a vida seria como uma terra movediça. É com base em tais verdades que o relativista e o pragmatista pauta a sua vida, e não haveria como ser diferente.
As verdades relativas, propriamente ditas, são as que decorrem da análise da mesma coisa em situações diferentes. O conceito de frio, para uma pessoa que vive num lugar em que a temperatura média é de 40° graus, bem pode ser diferente do conceito de frio de uma pessoa que mora num lugar onde a temperatura média é 20° graus. Não é que sejam dois tipos de frio antagônicos, mas conceitos de frio distintos, baseado em realidades distintas. Verdades objetivas, todavia, serão necessárias quando se tratar de realidades idênticas (variáveis e padrões idênticos).
Voltando então à definição de sanidade e demência, a sanidade poderá ser demência, e a demência sanidade, a depender do paradigma adotado. Se o paradigma adotado é a compreensão da linguagem, cada interlocutor verá ao outro como louco se as leituras de mundo expressadas não se corresponderem. Nesse caso, e partindo-se do pressuposto de que ambos os interlocutores vivem no mesmo mundo, teremos uma verdade relativa, mas não por se tratar de realidades distintas, mas por faltar mais dados sobre a realidade. Em se tratando de pessoas que vivem no mesmo mundo, a visão de um não será verdadeira apenas porque todos os demais compartilham dela. Como no exemplo da vida após a morte, caso esta não exista, não adiantará que todos creiam em sua existência (assim como, existindo, nada adiantará a descrença nela).
Se o paradigma adotado é a correspondência da linguagem com a realidade, não será suficiente a correspondência de leituras do mundo expressadas pela linguagem entre pessoas que podem fazer tal leitura, mas que a leitura de mundo seja realmente correspondente com a realidade. Assim, uma única pessoa que tivesse uma leitura de mundo correspondente com a realidade estaria com a verdade, em detrimento de todos que vissem e pensassem de outra forma.
É evidente que seria necessário conceituar realidade, bem como critérios para defini-la. Se os critérios forem diferentes, existirão “verdades” sobre a mesma coisa, e por isso, relativas. Aqui não se trata de verdades relativas propriamente ditas, mas de verdades absolutas que, circunstancialmente, equiparam-se às verdades relativas propriamente ditas.
Esta mera contemplação de “verdades” não faz de uma pessoa relativista, se a mesma tiver adotado um critério para conceituar a realidade, e daí extrair a sua leitura de mundo. Esta pessoa já possui um conceito de verdade, e o que não está dentro de seu conceito não é uma verdade, senão para aquele que possui outro critério. Os próprios critérios, por sua vez, devem ser julgados como certos e errados, e esse juízo depende necessariamente da compreensão da realidade. Assim, vemos que na própria compreensão da realidade extraímos os critérios para julgar a própria realidade. Se se entende que uma coisa é uma pedra, é porque a coisa possui características de pedra, e por se entender quais são as características de uma pedra, pode-se entender o que é, ou não, pedra.
Mas seria possível entender o que é pedra, sem a existência da pedra da qual extraímos as suas características, e o seu conceito? Se não houver nenhuma atividade criativa no ato de compreensão da coisa, não. Se o que queremos é compreender a coisa, pressupõe-se que a mesma já exista.
Como, então, se entende quais são as características de uma pedra? Observando-a. Mas como se observa?
Se duas pessoas enxergarem características diferentes e independentes (não complementares) na mesma pedra, onde estará o erro, na realidade, ou na compreensão dela? Parece-me evidente que na compreensão dela. A realidade é como uma mão que veste uma luva. Tanto a luva se amolda à mão como esta se encaixa com a luva. Se a luva não se amoldar à mão, é porque aquela não possui correspondência com esta. A compreensão da realidade deve corresponder à realidade, e uma compreensão da realidade que não corresponda à realidade não é uma compreensão da realidade. Não se trata de materialismo. O materialismo é uma definição da realidade, e desta definição nasce uma compreensão da realidade. A problemática reside justamente na definição da realidade, pois uma realidade erroneamente definida resultará numa compreensão errada da mesma, assim como uma compreensão errada da realidade resultará numa definição errada de realidade.
Temos, então, realidade, definição de realidade e compreensão da realidade. Como se saber se está compreendendo corretamente a realidade, bem como a definindo corretamente? A resposta é: por meio de uma consciência da realidade.
Naquilo que se chama de consciência da realidade não cabem indagações como: “e se a consciência da realidade estiver errada?” A consciência da realidade não pode estar errada, porque é a consciência que a realidade (absoluta) possui de si própria. Seria como um círculo que contempla a si mesmo, e se compreende como a linha que o delimita e tudo aquilo que está dentro. Não pode se contemplar como sendo além daquilo que é, nem aquém, do contrário, não será consciência da realidade, mas consciência de uma irrealidade. É um axioma (pressuposto necessário) para uma definição correta de realidade, e emerge do entendimento de que existem verdades absolutas. A consciência da realidade é o juiz perfeito, que permite entender realidade, e por isso, compreendê-la corretamente. É a onisciência, que necessariamente, e por definição, inclui um perfeito conhecimento de si própria.
Esta onisciência que a realidade possui de si própria é uma relação de imanência e transcendência entre realidade e consciência. A consciência da realidade precisa estar além da realidade (transcendência), mas necessariamente correspondendo à realidade (imanência). A realidade não é transcendente, mas a consciência dela sim. A consciência não é imanente, mas a realidade representada por ela sim. A consciência da realidade é o espelho fiel da realidade
Este conceito converge com o de um Deus todo poderoso, onisciente, onipresente e onipotente. Como um axioma necessário da própria existência, a existência está contida nele, sendo uma parte dele, finita, e não o próprio Deus, eterno. E como um ser onisciente, onipresente e onipotente, ele é a própria realidade, e ainda a consciência de si mesmo. Deus = realidade absoluta + consciência da realidade absoluta (imanência + transcendência).
Dentro deste panorama, o homem, que não é a realidade, mas parte da realidade, dificilmente poderá ter uma definição precisa da mesma em sua integralidade, ou em alguns de seus aspectos, pois sua ciência lhe dá um conhecimento limitado da realidade. Ele não pode julgar a realidade pela mera consciência de si mesmo, pois sendo apenas parte da realidade, não equivale a toda ela, e não contemplando o todo, não pode possuir onisciência, e para uma definição perfeita da realidade, em toda a sua dimensão, seria necessário ser onisciente. Todavia, o homem pode reconhecer este fato, abrindo-se à realidade desconhecida, mas nem por isso menos realidade. Abrir-se a realidade desconhecida é reconhecer a impossibilidade de defini-la ao mesmo tempo em que busca compreendê-la dentro dos limites da cognoscibilidade, que tem como limite a própria onisciência.
O relativismo é insustentável como filosofia, em toda sua dimensão. Todo ser humano precisa de verdades objetivas, e o mero reconhecimento de que a totalidade delas é inalcançável, não conduz a conclusão de que não existam. A mera contemplação de várias “verdades” num mosaico incompleto, por sua vez, não autoriza afirmar que todas sejam verdades, de fato.
Verdades relativas existem tomando-se por base partes da realidade distintas, e nesse aspecto, são válidas.
Todavia, “verdades” relativas acerca de partes da realidade iguais existem pela mera impossibilidade de se definir o que é realidade, o que leva a conclusão de que tais verdades relativas são apenas valores, crenças, verdadeiras, ou não.
Aquele que entende a existência de uma realidade desconhecida, mas nem por isso menos realidade, deve reconhecer que Deus é a realidade absoluta, e a consciência de si mesma. A fronteira para realidade desconhecida, em muitos casos, só poderá ser cruzada por um ato de fé. A ciência não pode, propriamente, cruzar tal barreira, porque, por definição, encontra-se dentro da fronteira das coisas conhecidas. Referida fronteira pode até ser alargada com o avanço científico, mas não propriamente cruzada, pois parece fato que os limites da realidade desconhecida são inimagináveis.
Sem onisciência, crer ou não crer em Deus (e em outras tantas coisas) é uma questão de fé.


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