quinta-feira, 8 de abril de 2010

A lei e o amor



"A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana. Sem a Bíblia, um livro que teve muita influência em nossa cultura e até em nossa maneira de ser, os seres humanos seriam provavelmente melhores". José Saramago – Escritor, Ateu, Prêmio Nobel de Literatura de 1998.

É comum ouvir dos céticos que o Deus do Antigo Testamento é cruel e o do Novo Testamento, “bonzinho”. Ao passo que o Deus do Antigo Testamento seria severo, duro e até cruel, o Deus do novo Testamento teria mudado bastante seu discurso, por meio de Cristo, anunciando coisas que iam de encontro ao anteriormente pregado pelos profetas do mesmo Deus, contradizendo a idéia de um Deus imutável.
Sustentam-se, na maioria das vezes, em passagens da lei mosaica, outorgada por Deus a Moisés, que determinava, dentre outras coisas, penas de morte por vários crimes, e que isso contrastaria bastante com a ostentada fama de bom moço de Cristo. Contudo, trata-se apenas de uma aparente incoerência, aferível unicamente pelo despeito, incapacidade de leitura séria e desonestidade intelectual dos céticos.
Uma sociedade primitiva como a do tempo de Moisés necessitava de um sistema "jurídico" eficaz que mantivesse vivo, mesmo sob o imperativo da sanção, os valores mais essenciais e vitais de uma sociedade. Nos parâmetros globais, não destoava de nenhuma civilização da época na maneira de fazer justiça, a mentalidade daquela época não estava impregnada de escrúpulos superficiais (piedade aparente) como é hoje, mas nem de perto nem de longe também era uma sociedade madura, mas em amadurecimento. Um amadurecimento que a história do povo judeu é testemunha. No judaísmo encontravam-se todas as bases ético-morais para o surgimento da mensagem cristã.
Leis contra homicídio, leis de guerra, leis sobre adultérios, todas eram extremamente severas, quando não cruéis, julgam os céticos. Esta análise, obviamente, é feita tomando-se como paradigma a sociedade atual, fortemente influenciada pela cultura cristã (cultura do perdão, do arrependimento, de uma nova chance) onde a Constituição Brasileira, por exemplo, proíbe penas cruéis (art. 5º XLVII). Mas uma análise despida de preconceitos e conforme a realidade da época nos revela que a Lei de Moisés não era injusta, apesar de severa. O que pode pagar uma vida? A vida do homicida é capaz de pagar, eficazmente, a vida ou as vidas por ele ceifadas? A análise mais neutra possível nos leva a concluir que a vida somente é paga pela própria vida, por ser um bem indisponível, e por isso a pena para o homicida era equivalente ao seu crime, e a pena era de morte. Ninguém tinha o direito de ceifar a vida de outrem (Êxodo 20:13 - Não Matarás), mas se o fizesse, estaria passível de pagar de maneira minimamente equivalente. A idéia não era compensar uma morte com outra (visto que não compensava), mas impregnar nas mentes o valor ético e moral de que o homicídio era um crime gravíssimo, dignificando a vida humana ao extremo, mesmo que em face de outro ser humano. A regra, em geral, tem a característica de ser abstrata e não se servir a apenas uma pessoa, mas a todos. Não é outra a idéia, mesmo hoje, nas gradações das penas, onde a pena maior qualifica o delito de maior gravidade, bem como o maior valor do bem jurídico tutelado em relação aos crimes de penas menores. Ademais, a equivalência entre a violação do bem jurídico e a pena, mesmo naquela época da lei mosaica, não era cega. Um homicídio culposo (sem a intenção de matar) não era tratado da mesma maneira que um doloso: "Deuteronômio 19.5 - Assim, aquele que entrar com o seu próximo no bosque, para cortar lenha, e, manejando com impulso o machado para cortar a árvore, o ferro saltar do cabo e atingir o seu próximo, e este morrer, o tal se acolherá em uma destas cidades (cidades refúgio) e viverá;”. Numa sociedade como aquela, com uma estrutura jurídica precária, a idéia da cidade refúgio se mostrava em demasiado avançada, uma vez que elidia o risco existente da justiça ser exercida de forma privada.
Outros crimes violavam, contudo, valores equiparados a própria vida por sua gravidade, como no caso do estupro, onde a dignidade da pessoa humana, nesse caso, valia tanto quanto a própria vida: “Deuteronômio 22.25,26 - Porém, se algum homem no campo achar moça desposada, e a forçar, e se deitar com ela, então, morrerá só o homem que se deitou com ela; à moça não farás nada; ela não tem culpa de morte , porque, como o homem que se levanta contra o seu próximo e lhe tira a vida, assim também é este caso.”
Condutas como o adultério, a feitiçaria e sacrifícios humanos eram punidos com a morte por violarem valores equiparados a vida naquela sociedade. Extirpava-se daquela sociedade ainda frágil e primitiva todo o fermento de destruição. O adultério, pois, se tolerado, acabaria com o matrimônio e a família, uma das bases daquela sociedade tribal, o que terminaria por comprometer a própria existência daquele povo; A feitiçaria, pois maculava a outra essencial base daquela sociedade, que era a unidade do povo no culto ao verdadeiro Deus; Os sacrifícios humanos, por sua vez, eram abomináveis, uma vez que o objetivo da lei era impregnar naquela sociedade valores éticos e morais, dentre eles o valor da vida humana, que Deus sempre buscou proteger, e não destruir. Por isso um animal morria em sacrifício pelas transgressões dos homens, símbolo da morte que o erro e o pecado traziam, explícitos no rigor da lei. O sacrifício de animais era o único admitido por Deus, pois simbolizava a gravidade comum a qualquer pecado, que, sendo ou não passível de morte física, possui como última consequência a morte espiritual, a separação perpétua de Deus, que é santo. Demonstrava também o relevo da importância do homem dentre todos os outros seres vivos.
Nem todas as condutas reprováveis eram punidas com a morte, mas embora houvesse outras penas, estava claro que a transgressão estava ligada a morte, fosse pela pena de morte, fosse pela morte de um animal. Um animal, sem defeitos, seria sacrificado pela culpa do homem, simbolizando a morte de Cristo, cordeiro de Deus. A idéia do sacrifício de um cordeiro não era aplacar a ira de Deus, como se costumava ver no paganismo, mas gerar no homem o arrependimento, pois um animal perfeito, simbolizando a pureza e a ausência de culpa, seria “punido” em lugar do homem culpado. Esse é o valor ético contido no sacrifício determinado por Deus. Todo homem deveria refletir no ato de sacrificar o animal pelos seus próprios pecados e ser grato a Deus, que ao invés de punir o homem, prefere perdoá-lo, pois nenhum homem suportaria a justa balança de Deus, o peso de sua mão, diretamente, de forma que desde o início Deus demonstrou ser misericordioso, disposto a perdoar. Mas o perdão exige sacrifício.
Quando se executavam as penas de morte determinadas pela lei, agia-se sob o imperativo desta, e não por vingança e ódio contra os transgressores: "Não te vingarás, nem guardará ira contra os filhos do seu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. (Levítico 19:18)". Muito embora a lei pudesse vir a aplacar o ódio e o desejo de vingança de alguém, o objetivo principal da lei era estabelecer a ordem conturbada pelo crime e consolidar valores ético-morais na sociedade. A pena de morte para o criminoso, portanto, era uma consequência da violação da lei, e não um fim em si mesma, pois que o fim era justamente proteger a vida. Seguindo o mesmo raciocínio, temos a situação em que um policial se vê obrigado a matar o criminoso para proteção de outras vidas. Nesse caso, o policial agiu no estrito cumprimento do dever legal, que segundo o direito penal contemporâneo, é uma excludente de ilicitude. Dessa forma, nos tempos da lei de Moisés, executar a justiça da lei que determinava a morte de um criminoso não violava o "não matarás", não havendo contradição entre o mandamento e a consequência da violação da lei, pois ambos visavam o mesmo fim, dignificar ao máximo a vida e outros valores igualmente importantes.
Como já dito, a finalidade da morte de um animal não era aplacar a ira de Deus, quanto menos agradá-lo com o cheiro de fumaça, mas levar o homem ao arrependimento: "Oséias 6:4 – Pois misericórdia quero, e não sacrifícios, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos"; “Tem porventura o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios, como em que se obedeça a Palavra do Senhor? Eis que o obedecer é melhor que o sacrificar; e atender é melhor que a gordura de carneiros (1 Samuel 15:22)."
Jesus Cristo não veio revogar ou anular a Lei de Moisés, como insinuam os exegetas de araque da Bíblia, que pregam uma versão arrependida de Deus, o "Deus bonzinho". Antes, Cristo disse: "Mateus 5:17,18 - Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas torná-la perfeita. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido.” Deus nunca mudou. Com Cristo, a lei que apontava para a sua figura ganha cumprimento, os sacrifícios de animais não são mais necessários porque simbolizavam o sacrifício do próprio Cristo; o sábado, que simbolizava o descansar em Deus, tem seu sentido cumprido em Cristo, senhor do sábado (vinde a mim cansados e oprimidos), para aqueles que descansam em Cristo; e muitas outras coisas da simbologia judaica que se tornaram inócuas, pois em Cristo ganharam o seu pleno cumprimento, tornando-se nEle também plenas em seu sentido.
A maior prova de que Cristo não veio revogar a lei, mas torná-la perfeita, está no conhecido caso da mulher adúltera (João 8: 1 a 11), que, pela lei, deveria morrer apedrejada. Jesus Cristo não questionou a lei, mas mostrou a sua real finalidade. Pela lei, o homem também deveria morrer (Levítico 20:10), mas só levaram a Cristo a mulher. A lei que deveria ser cumprida com temor era cumprida com hipocrisia e demagogia. Jesus veio mostrar (cumprir) a finalidade da lei, que era mostrar que o pecado leva a morte, não meramente física, mas espiritual, e a missão de Cristo era salvar o pecador. Maior do que a justiça da lei, que não sonda o coração do homem, está a misericórdia para com o pecador que verdadeiramente se arrependeu. Se não houvesse a lei com a pena de morte, aquela mulher jamais poderia chegar ao arrependimento, visto não ter consolidada a consciência do erro, que a lei gera. Aquela mulher que estava à beira da morte, à primeira vista apenas morte física, também foi salva da morte espiritual, esta sim, realmente grave. A lei serviu, portanto, como educação (disciplina) para a consciência.
Se a lei de Moisés serviu para impregnar valores éticos e morais na sociedade e frear a índole má do homem, nossa lei vigente serve como verdadeira chance de arrependimento. Cristo não anulou os preceitos morais criados pela lei mosaica, mas veio mostrar o seu completo sentido. Só necessita se arrepender aquele que transgrediu valores morais estabelecidos e isso só é possível se a pessoa possuir tais valores. A lei servia para consolidar e enraizar nos corações os valores primados por Deus e, consequentemente, o temor ao próprio Deus. Na verdade, mesmo sem a lei, o Apóstolo Paulo constatou a existência destes valores no coração de todo homem, de forma que, mesmo sem a lei, os preceitos de retidão colocados por Deus no coração do homem testificam juntamente com a sua consciência e os seus pensamentos, quer os defendendo, quer os acusando (Romanos 2:15). Portanto, não conhecer o que é reto é algo inescusável. Bom para aqueles que se conscientizaram de que eram transgressores e que podem mudar de vida. Péssimo para a sociedade nos casos em que o transgressor não se arrepende, pois ela terá de conviver com alguém provavelmente disposto a reincidir nos erros, pois o destemor às consequências da lei impede o transgressor de parar, não sendo mais a lei capaz de educar eficazmente. Para muitos criminosos, cometer crimes é ainda compensador, visto que, crendo não terem muito a perder com as conseqüências da lei, vivem com despeito as punições, o que não é fruto necessariamente de um sistema penal brando, mas de um relaxamento da disciplina que impunha os valores éticos e morais plasmados na sociedade pela herança da cultura judaico-cristã. Ademais, muitos valores que eram seriamente tutelados pela Lei de Moisés são hoje desprezados pelas leis vigentes, como o casamento, excluindo-se o adultério não apenas da esfera penal, mas mesmo na esfera exclusivamente moral este já tem se tornado tolerável. Mesmo nas sociedades mais ricas, onde se conseguiu diminuir bastante os índices de criminalidade, os valores exclusivamente morais, segundo a ética-moral judaico-cristã, antes tão valiosos quanto a própria vida, agora estão cada vez mais relativizados. A Lei de Moisés, portanto, não serviu apenas para conter a criminalidade, mas serviu para manter consolidado naquela sociedade os valores éticos e morais necessários e indispensáveis para que Cristo pudesse exercer seu ministério salvífico chamando todos os homens, judeus e gentios, ao arrependimento.
Contrastando com as tolas impressões do escritor português José Saramago acerca dos valores da Bíblia, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (irmãos Karamazov), em seu pessimismo, sensatamente asseverou: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.
Sem Deus, a forma absoluta do juízo moral não existe.

2 comentários:

  1. Dispensa comentários. Sério. Belíssimo texto. Você escreve demais, cara! Parabéns.

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  2. Sem querer ser reduntante, mas já sendo... Sem Palavras... Belíssimo texto.

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