quinta-feira, 15 de abril de 2010

A Verdadeira Vontade de Deus.



Neste texto resolvi comentar um assunto espinhoso dentro dos escritos bíblicos. Será o bem absoluto, a boa e perfeita vontade de Deus, impraticável em determinadas situações ou contextos?
Sabemos que o homem é pecador, não há exceção. Digo sem exceção porque alguém poderia vir dizer: hoje sou uma nova criatura, não peco mais! Ilusão! Mesmo a nova criatura peca, a diferença é que a nova criatura não é mais escrava do pecado, ela está alforriada, não incidindo mais sobre ela o julgo de morte. Apesar de viver e receber a dádiva de uma nova vida, o indivíduo ainda está sujeito a tropeçar e a caminhar em caminhos errados. Em Eclesiastes 7.19 diz: “Não há homem justo sobre a terra que faça o bem e não peque.” O conceito de justo do professor em Eclesiastes é o absoluto, e não o relativo, que costumamos aplicar.
Mas a questão ainda não se resume a isto. Poderia o homem evitar o próprio pecado causado por culpa de terceiros (sociedade, realidade prática ou exigências da vida)? A resposta, para mim, é negativa. Pior, mesmo o homem não podendo evitar o próprio pecado causado por fatores alheios a sua própria vontade, isso não o isentaria do julgo do pecado. Como humanidade, somos pecadores porque somos parte de Adão, o primeiro homem, alma vivente (1 Coríntios 15.45). Precisamente, não herdamos os pecados de Adão, mas compartilhamos do mesmo mal, como integrantes de um todo (a humanidade). Assim como compartilhamos o julgo da morte em Adão, compartilhamos a vitória sobre a morte em Jesus Cristo. Adão responderá por suas próprias culpas e nós, pelas nossas. Não há como se ter por escusado.
O assunto se torna delicado porque se confunde com a idéia de uma herança maldita, uma herança do pecado. A Bíblia em diversas passagens rechaça essa possibilidade, como na que os discípulos de Jesus perguntam para o mestre sobre a razão do cego ser cego (João 9.1-3). Pecado dos pais, do próprio cego? Jesus diz: nem um nem outro, mas para que se manifestasse sobre ele o poder de Deus. Assim, o assunto merece uma melhor análise, rechaçando a idéia de maldição hereditária, mas sem ignorar os inegáveis efeitos coletivos que o pecado possui sobre indivíduos que nada fizeram.
Vê-se que a sociedade é um organismo, um corpo. Se um membro está doente, todo o corpo sofre. Com o pecado também é assim, o pai peca e certas conseqüências deste pecado são sofridas pelos filhos e pela esposa. Não se trata, nesse caso, de uma herança de pecado, mas de um efeito solidário deste, um efeito que abrange necessariamente mais de uma pessoa. Assim também ocorre com um país, que sofrerá com as conseqüências da decisão errada de seu líder, independentemente do povo ter compactuado com ela.
Não há herança de pecados e nem mesmo de maldição. “A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai, nem o pai, a iniqüidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso cairá sobre este (Ezequiel 18.20)”. Contudo, entendo poder haver solidariedade com pecados, solidariedade com maldições. Qual a diferença? A herança pressupõe uma sucessão, sai o sucedido e entra o sucessor. Como já dito, a Bíblia rechaça completamente essa possibilidade, o filho não herda o pecado do pai, se o pai não padeceu todos os efeitos possíveis do pecado, estes não serão transmitidos para o filho. Mesmo hoje, ninguém herda uma pena de prisão de alguém que não veio a pagar completamente por ela. Se um pai foi condenado a 30 anos de cadeia e não veio a cumprir por um motivo qualquer, não será o filho que pagará. A herança pressupõe, necessariamente, uma sucessão, a assunção da dívida do sucedido pelo sucessor. E nesse sentido, não há assunção de débitos espirituais de nossos antepassados. Nós só responderemos por nossas próprias culpas. Mas enquanto coletividade, nossos pecados podem fazer o mal não apenas para nós mesmos, mas para todos que de alguma forma estão interligados.
Solidariedade significa responsabilidades iguais, indivisíveis, pois vistas como um todo e nunca individualmente, e não cogita culpabilidade. É como o corpo humano, se um membro está doente, diz-se que o indivíduo está doente, pois os membros são partes integrantes do todo e não são vistos separadamente dele. Não faz sentido se pensar em um fígado ou em um coração sem um corpo.
Quando há responsabilidade solidária, pouco importa no corpo quem é o causador do efeito, pois todos são solidários. Num país, se o presidente é corrupto e toma decisões erradas, não faz sentido dizer que só o presidente sofrerá as conseqüências de seus atos. Como líder de uma nação, suas decisões, boas ou más, repercutirão na sociedade como um todo. Se forem más, a sociedade (vista como um todo) sofrerá seus efeitos, independentemente de culpa.
Contudo, há uma extensão dessa solidariedade a proporções pouco analisadas. A questão é a impraticabilidade do bem absoluto em meio a uma sociedade doente. Seria o bem absoluto, a vontade de Deus perfeita, impraticável em certas situações? Aqui reside a problemática do assunto.
Imaginemos uma situação em que um membro do corpo está doente, gerando sofrimento e perigo para o corpo como um todo. E para evitar que esta situação se prolongue indefinidamente ou se agrave, relativiza-se a boa e perfeita vontade de Deus. Significa dizer que, para cessar o sofrimento ou o efeito mortal que o membro doente está gerando, uma atitude extrema e dolorosa deverá ser tomada. Comparo com a perna que precisa ser amputada. Amputar é tirar do todo parte que não é vista fora dele, uma parte necessária, mas que diante das circunstâncias, precisa ser cortada para não comprometer a saúde do todo. Retirar a perna do todo não é algo que possamos chamar de ideal, de perfeito, mas é o “mal necessário”. Por vezes reparei que a vida espiritual nos coloca em situações parecidas.
Um desses casos, onde entendo que houve uma relativização do cumprimento da boa e perfeita vontade de Deus, deu-se com o divórcio. Nos tempos da lei mosaica, o instituto do divórcio foi regulado (Deuteronômio 24.1-4), sendo naquela época admissível. Contudo, mais tarde Cristo explica que o divórcio nunca foi da vontade de Deus, apesar de sua permissão está contida na lei outorgada pelo próprio Deus a Moisés. Cristo então explica que o divórcio foi admitido porque os homens eram duros de coração (Mateus 19.8). Penso que Cristo quis dizer que se não se admitisse o divórcio, outras conseqüências nefastas poderiam recair sobre o homem, piores do que as decorrentes do próprio divórcio, que nunca foi da vontade de Deus. Também revela certo nível de impraticabilidade da vontade de Deus. Se fosse o homem capaz de cumprir de forma plena a sua vontade, não teria o próprio Deus relativizado o seu cumprimento pelo homem. Vê-se que não foi o valor divino que foi relativizado, pois que é absoluto e imutável, mas o seu cumprimento pelo homem. Cristo então declara ao homem qual era a boa e perfeita vontade de Deus sobre o assunto, mas a tolerância de Deus na época da lei de Moisés fez o homem banalizar o casamento e o divórcio.
Outro caso onde entendo que houve relativização do cumprimento da verdadeira vontade de Deus estava nas posturas de guerra que Israel tinha perante seus inimigos. Em guerras, não eram poupados animais, mulheres, crianças ou idosos, sendo todos aniquilados a fio da espada. Tais determinações vinham do próprio Deus, contrastando com a imagem que realmente conhecemos dele: um Deus bondoso, misericordioso e pacífico. Ora, conhecemos que Deus abomina homicídios (Êxodo 20:13 - Não matarás), como Deus então admitia e até determinava a sua prática nas guerras? O cristão deve tomar cuidado para não se embebedar em questões puramente retóricas, que por sua complexidade, podem levá-lo a cegueira espiritual, desviando o homem da busca pelo conhecimento genuíno (que exige humildade), por uma busca desenfreada por respostas satisfatórias ao ego, que por sua vez, afastam-se da verdade.
O sábio professor, em Eclesiastes, dizia: “não sejas demasiado justo, nem exageradamente sábio; por que te destruirias a ti mesmo? Não sejas demasiado perverso, nem sejas louco; por que morrerias fora do teu tempo?” (Eclesiastes 7.17-18)
Não devemos confiar na nossa própria justiça e nem mesmo sermos tolos ao ponto de nos iludirmos de que somos capazes de possuir a justiça perfeita, bem como a plenitude do conhecimento. Ambos os extremos são perigosos para o homem, porque um leva o homem a arrogância e o outro leva o homem à decadência.
Quando Hitler liderou a Alemanha contra vários países, será que muitos inocentes alemães não sofreram conseqüências danosas? Quando a Alemanha se comprometeu com a guerra, comprometeu todos os seus cidadãos: soldados, mulheres, crianças e idosos. Seria a morte de crianças alemãs o ideal? Certamente não. Contudo, é possível haver guerra sem haver tais atrocidades? Uma guerra em si já é uma atrocidade. Se apenas os vilões (os culpados) resolvessem se digladiar e morressem, ainda assim haveria atrocidade contra o gênero humano. Se em tempos modernos ocorre isso, por que nos tempos antigos essa realidade seria diferente? A Bíblia não é um livro de ficção, e nunca se propôs a ser um. Apesar de nela encontramos parábolas, alegorias e simbologias, ela trata da vida real, do homem real (e imperfeito) e sua relação com Deus (perfeito).
Se a Bíblia fosse um livro de uma realidade idealizada, uma realidade fictícia, nela não haveria guerras. Havendo guerras, ainda seria um livro de ficção se nela os filhos dos soldados mortos crescessem sem ânimo de vingança contra os algozes de seus pais, estabelecendo ainda com tais algozes alianças de paz perpétua. Seria ainda ficção se as crianças que perderam os pais fossem criadas e recebessem cuidados dos algozes de seus pais, tal como o que estes dão aos próprios filhos, e se as crianças órfãs amassem seus novos pais, algozes de seus pais biológicos, como estes. Isso pode até soar bonito, mas não corresponde à realidade do ser humano. Se comparássemos a vida a um vídeo game, seria como o jogador que sem nenhuma experiência de jogo e possuindo um código de invencibilidade, passasse por todos os obstáculos sem se preocupar com nada. Para jogadores de verdade, isso também não é um jogo de verdade. Prefiro comparar a vida a um concerto musical, onde Deus é o maestro, e a humanidade, os músicos. Quem executa propriamente a sinfonia não é o maestro, mas ele a tem sob seu controle, sem privar o desempenho e a qualidade individual dos músicos, permitindo momentos de destaque para um ou outro instrumento e, sem dúvidas, sem exigir de seus músicos aquilo que eles não são capazes de executar. Se ele exigisse, o próprio concerto musical não seria possível. Não haveria música, haveria um pandemônio.
Para o “piedoso” indivíduo que vive numa democracia (um sistema que se desenvolveu modernamente em países de tradição judaico-cristã) é fácil, de seu confortável sofá, bater no peito e taxar Jeová de mau. Mas esse mesmo indivíduo não viveu e não conheceu a realidade de uma guerra. Se tivesse conhecido, clamaria por justiça divina, pedindo a intervenção de Deus como um verdadeiro general disposto a livrá-lo do perigo e do sofrimento, e Deus não o ouviria, e este mesmo indivíduo terminaria por negar a Deus, como igualmente faz em situação completamente oposta. É o que eu chamaria de cinismo espiritual.
Como o povo de Israel perduraria na face da terra até os dias de hoje se no ato de guerrear, ao invés de aniquilar completamente o inimigo (nação como um todo), mantivesse a semente dele ainda viva, criando a possibilidade da semente do inimigo vir a crescer e posteriormente ser causa de uma nova guerra? Como Israel chegaria até os dias presentes se Deus exigisse de seu povo coisas impossíveis de serem realizadas por todos num contexto social interdependente, repleto de relações de causa e efeito? Como Israel compreenderia as determinações de Deus para andar retamente, para guerrear, entre outras, se Deus não utilizasse linguagem compreensível, psicologicamente adequada à realidade, aos medos e aos escrúpulos daquele povo? Os líderes de Israel, contudo, sabiam diferenciar sem maiores problemas o mandamento de Deus que determinava o “não matarás” e as determinações para as guerras, claras exceções em um típico regime de exceção. Ninguém naquela época se fazia de sonso, desentendido ou confuso com as leis. O curioso (e contraditório) é que geralmente os mesmos “piedosos” que condenam tais atitudes no Antigo Testamento são os mesmos que hoje defendem o aborto como recurso de dignidade humana.
Vê-se claramente que embora o valor divino proíba o homicídio, o seu cumprimento foi relativizado pela realidade da época. Em certas situações, o próprio Deus, em sua soberania e sabedoria, impôs ao homem andar por caminhos tortuosos, distantes de sua perfeita e boa vontade, por ser ela impraticável e impossível ao homem naquele determinado contexto. Como seria bom que uma pessoa com câncer pudesse simplesmente curar o órgão afetado, ou ainda amputá-lo e logo em seguida surgisse outro, como uma planta que brota, sem nenhum prejuízo físico, orgânico ou estético. O pecado é o contexto que a humanidade vive, seja o judeu ou o gentio, seja o cristão ou o não cristão. É por isso que a salvação é pela graça, nunca por obras (Efésios 2:8-9). Se fosse por obras (mérito próprio), absolutamente ninguém seria salvo, pois praticar o bem absoluto é impossível ao homem indivíduo, e ainda mais impossível, em proposital pleonasmo hiperbólico, para o homem em conjunto – família, nação, congregação, etc. – visto que numa coletividade, um depende do outro.
Não é inadequado diferenciar tempo da lei e tempo da graça quando se compreende bem o que foram tais tempos. A lei surgiu para preparação do Messias, do povo de onde ele viria e para a revelação da perfeita e boa vontade de Deus (fazendo-nos concluir que a humanidade ainda não estava pronta). Compartilhando do entendimento do escritor C.S.Lewis, a revelação divina, antes de Cristo, estava difusa na humanidade, as religiões eram imperfeitas e incompletas. O Messias viria de um povo, e este povo eleito e preparado foi o judeu, por amor de Deus a Abraão. A religião judaica, diferente das demais, era perfeita, mas ainda incompleta, pois não manifestava a perfeita e boa vontade de Deus claramente. A lei era boa e a verdade estava na lei, mas ela velava a verdadeira vontade de Deus (2 Coríntios 3.15), manifestada apenas posteriormente em Jesus Cristo, que preencheu a “lacuna” existente. Na era cristã, ou tempo da graça, percebemos um nítido amadurecimento espiritual do homem que busca a Deus. A era cristã trouxe também um notável amadurecimento civilizatório ao ser humano. Tudo ocorreu em seu devido tempo.
Outro exemplo, que também entendo como relativização do cumprimento da boa e perfeita vontade de Deus, ocorreu nos relacionamentos não monogâmicos. É clarividente na Bíblia que Deus estabeleceu o relacionamento monogâmico (Genesis 2.24) como o ideal, a sua verdadeira vontade, contudo, o Antigo Testamento é repleto de casos onde o homem possuía mais de uma mulher. Parece que nos tempos de Paulo ainda havia esse costume (1 Timóteo 2.3), recomendando o Apóstolo à igreja que os pastores fossem maridos de uma só mulher. Paulo provavelmente estava disseminando, como novo costume a ser adotado, a boa e perfeita vontade de Deus para o casamento, que é o relacionamento monogâmico. Esse novo costume seria o referencial de prática para todos os cristãos dali em diante, como de fato ocorreu.
Com Cristo, o cristão recebe o Espírito Santo, transformando a sua mente na de Cristo (1 Coríntios 2.16). Na epístola aos Romanos, capítulo 12, versículo 2, o Apóstolo Paulo exorta a igreja: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”
A transformação não é automática, ela exige renúncia de si mesmo, em santificação constante. O Cristão é chamado à perfeição (Mateus 5.48) e muito embora ela ainda não seja alcançável (penso eu), hoje, com o ministério do Filho do Homem (servo do Senhor) cumprido e o auxílio do Espírito Santo, a humanidade possui maior maturidade e preparo para conhecer a perfeita e boa vontade de Deus do que aquela que vivia sob a égide da lei mosaica ou mesmo sem lei, o que implica também em maior responsabilidade espiritual para os que vivem hoje. Talvez ainda não sejamos capazes de conhecer e cumprir a perfeita, boa e agradável vontade de Deus plenamente, coisa que fatalmente acontecerá na parousia (encontro com Cristo), quando veremos a Cristo como ele nos vê (1 Coríntios 13.12).

Um comentário:

  1. Como sempre, muito bom seu texto... Gostei particularmente da comparação em que "a vida a um concerto musical, onde Deus é o maestro, e a humanidade, os músicos".

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